Quase seis mil meninas entre 10 e 14 anos se tornaram mães na Bahia nos últimos cinco anos — todas vítimas de estupro de vulnerável, conforme a legislação brasileira. No mesmo período, o número de registros oficiais de violência sexual nessa faixa etária foi menor: pouco mais de 3,9 mil casos. Ou seja, parte significativa dessas vítimas engravidou sem sequer ter tido o crime reconhecido pelo sistema de proteção.
A discrepância é ainda mais evidente quando se observa o acesso ao aborto legal. De 2021 até agora, apenas 55 meninas nessa condição conseguiram interromper a gestação — número que representa 0,92% do universo de 5.939 partos registrados no estado.
“A grande maioria nem chega ao serviço. Meninas com menos de 14 anos grávidas são vítimas de estupro, mas poucas conseguem acessar o abortamento”, afirma Fabiana Kubiak, psicóloga da Área Técnica de Atenção à Pessoa em Situação de Violência Sexual da Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab).
Profissionais do setor demonstram preocupação após a Câmara dos Deputados aprovar, na última quarta-feira (5), um projeto que derruba uma resolução do Conanda — responsável por garantir que crianças vítimas de estupro fossem informadas sobre o direito à interrupção da gestação e pudessem fazer o procedimento mesmo sem boletim de ocorrência ou autorização judicial. A proposta segue agora para votação no Senado.
“Toda menina menor de 14 anos tem direito ao abortamento. Mas elas não estão sendo notificadas como vítimas e seguem sendo obrigadas a gestar. A resolução do Conanda estabelecia um fluxo mais claro para o acesso nas unidades de saúde”, explica Fabiana. Ela acrescenta que a Bahia finaliza um protocolo intersetorial que deve unificar orientações às vítimas e aos profissionais até 2026.
Naturalização da violência
A psicóloga aponta que uniões afetivas entre meninas e homens adultos ainda são tratadas como algo culturalmente aceitável, invisibilizando o crime. O IBGE reforçou esse cenário nesta semana: a Bahia ocupa o 2º lugar no país em número de crianças e adolescentes vivendo uniões conjugais — mais de 2,7 mil casos. O casamento civil no Brasil só é permitido a partir dos 16 anos.
Na Bahia, as vítimas de parto infantil por estupro têm entre 9 e 14 anos, com predominância de meninas negras: das 5.939 mães, 5.238 são negras (88%). Entre as que conseguiram realizar o aborto legal, todas são negras.
“Se estão parindo, estão sendo estupradas. E além da violência sexual, enfrentam a violência social de serem obrigadas a ter esse filho”, diz Fabiana Kubiak.
Realidade nos serviços
Desde 2021, o programa Apoiar, da Maternidade Climério de Oliveira (Ufba), realizou mais de 200 atendimentos a vítimas de violência sexual, mas apenas 22 em meninas até 14 anos. Metade delas fez o abortamento. A unidade é a única na Bahia autorizada a realizar o procedimento após 22 semanas de gestação.
“A maioria chega tarde demais. Muitas confundem sinais da gravidez com as mudanças normais da puberdade”, diz a psicóloga Leila Costa. Ela acrescenta que muitos casos envolvem abusadores próximos — pai, padrasto ou avô — ou homens adultos com quem a menina mantém relação afetiva.
Para Leila, suspender a resolução do Conanda aprofundaria desigualdades já existentes.
“A maioria dessas famílias tem baixa renda e vive no interior. Se o acesso já é mínimo, impedir esse direito vai fazer com que nem as poucas que conseguem chegar até aqui tenham uma alternativa.”













