Nas últimas décadas, a vida noturna de Belo Horizonte passou por uma transformação que preocupa frequentadores, empresários e até a prefeitura. Casas noturnas tradicionais fecharam as portas, enquanto bares que antes varavam a madrugada agora encerram o expediente cada vez mais cedo. O cenário deixou órfãos os chamados “inimigos do fim”, aqueles que, até pouco tempo atrás, resistiam até o nascer do sol.
A situação já entrou no radar da gestão municipal. O prefeito Álvaro Damião manifestou publicamente sua preocupação e afirmou que busca soluções para reaquecer a cultura noturna da cidade. “BH precisa estar acordada depois da meia-noite”, declarou em entrevista ao jornal O Tempo, sugerindo medidas como a ampliação de linhas de ônibus em horários estendidos, oferecendo mais segurança e mobilidade para quem vive ou trabalha na madrugada.
A crise, no entanto, não é exclusiva da capital mineira. Grandes centros urbanos pelo mundo têm enfrentado um esvaziamento da vida noturna, impulsionado por mudanças de comportamento, custos elevados, insegurança e, sobretudo, uma transformação nos hábitos das gerações mais jovens. Dados do Relatório Covitel revelam que o consumo regular de álcool entre jovens da geração Z caiu de 10,7% antes da pandemia para 8,1% em 2024, uma queda que reflete um novo olhar para saúde, bem-estar e formas de socialização.
O professor e pesquisador Victor Hermann, doutor em mídias, artes e literatura pela UFMG, vê nesse movimento algo mais profundo, que chama de “catástrofe da noite”. Para ele, o temor que antes esvaziava os centros urbanos durante o dia, o medo da violência física, hoje dá lugar a uma nova ansiedade: o medo da violência afetiva, alimentado por redes sociais que reforçam o medo do outro, do acaso e do inesperado. “O sensacionalismo desencoraja o investimento no desconhecido e na diferença”, analisa.
Hermann argumenta que vivemos uma transição da “noite escura”, território do risco, do desejo e da imprevisibilidade, para a “noite branca”, marcada pela segurança dos algoritmos. É a noite do entretenimento filtrado: maratonas de séries, encontros mediados por aplicativos e festas hipersegmentadas, onde tudo, inclusive a playlist, é previamente definido. “A noite se tornou um produto, moldado para consumo e sem espaço para o inesperado”, resume.
Apesar do diagnóstico crítico, há quem veja o momento não como fim, mas como transformação. O produtor cultural Aluizer Malab acredita que a madrugada perdeu, sim, parte de seu apelo, mas novas experiências surgem no horizonte, muitas, inclusive, à luz do dia. “Brunchs, cafés com DJs, festas sem álcool e experiências sensoriais têm ocupado um espaço antes dominado pela boemia da madrugada”, observa.
Malab defende que a noite não acabou, apenas mudou de forma. E lembra que manifestações como os bailes funk, as batalhas de rap, os eventos de techno e as tradicionais rodas de boteco seguem firmes como espaços de resistência cultural e social. “Enquanto setores médios migram para o diurno, o baile funk resiste como espaço de afirmação identitária e ocupação do território”, aponta.
Para Hermann, movimentos como as raves itinerantes de Belo Horizonte, que divulgam seus endereços apenas de última hora, são exemplos de como ainda existe desejo pelo mistério, pela surpresa e pela experiência não totalmente controlada. “É um gesto simples, mas que devolve à noite parte do seu encanto, frustrando quem espera viver uma experiência moldada nos moldes dos algoritmos.”
Entre os que veem crise e os que vislumbram reinvenção, um ponto é consenso: a vida noturna está longe de desaparecer, mas segue em mutação. Seja na pista de dança ou no café da manhã, o espírito de encontro, com o outro e consigo mesmo, ainda pulsa. Como resume Malab: “Segue o baile”.