Documentos obtidos pelo Metrópoles revelam que uma associação criminosa no interior paulista utilizava uma fábrica de peças aeroespaciais para produzir fuzis. A investigação da Polícia Federal (PF) aponta que o grupo mantinha um circuito técnico paralelo, com engenheiros e operadores de máquinas de alta precisão, que compartilhavam arquivos, projetos e códigos de programação. Parte do armamento tinha como destino o Rio de Janeiro, chegando às mãos de integrantes do Comando Vermelho (CV).
Laudos anexados ao processo, que tramita na 1ª Vara Criminal de Americana (SP), indicam que a quadrilha utilizava softwares industriais — como MasterCam e Autodesk Fusion 360 — para desenhar peças de fuzil AR-15. As peças eram então produzidas na Kondor Fly, fábrica de componentes de aviões de pequeno porte usada como fachada em Santa Bárbara d’Oeste.
Os investigadores verificaram que os arquivos digitais eram frequentemente trocados por WhatsApp e e-mail, muitas vezes com o assunto “protótipos de aviação”. Em operação realizada em agosto deste ano, a PF apreendeu pen-drives e HDs externos contendo plantas de canos e receptores completos, todos compatíveis com armamento real de uso restrito.
Um trecho do laudo pericial ressalta que “os arquivos digitais localizados apresentam nomenclatura técnica, mas seguem o mesmo padrão dimensional de armamentos tipo Colt/AR-15”.
Bastidores de uma indústria clandestina
O documento policial aponta Anderson Custódio Gomes como o “núcleo técnico e intelectual da produção” de armamentos. Formado pelo Senai, ele dominava os códigos de Controle Numérico Computadorizado (CNC) e programava as máquinas de alta precisão, usadas para cortar metal no formato exato de cada peça.
Em seu interrogatório, Anderson afirmou que “não fabricava arma nenhuma”, mas que apenas “fazia programas e testava o funcionamento das máquinas por encomenda do chefe”.
Segundo o próprio depoimento, ele dizia que “só programava as peças no computador. Quem mandava fazer era o Milque, que dizia ser coisa da empresa. Eu nem sabia que era parte de fuzil”, relatou ao delegado federal Jeferson Dessotti Cavalcante Di Schiavi.
A perícia identificou que ele havia salvo projetos com os nomes RX-556, MkB-Protótipo e Vento Azul, todos correspondentes a partes de fuzis. De acordo com o delegado Di Schiavi, esses nomes eram “códigos internos usados para disfarçar o conteúdo técnico real das peças”.
Elo logístico e financeiro
Wendel dos Santos Bastos foi identificado pelas investigações da Polícia Federal como outra peça essencial para a engrenagem criminosa, atuando como elo entre o chão de fábrica e o mercado ilegal.
De acordo com relatório policial, Bastos intermediava a compra de insumos metálicos e também gerenciava os pagamentos dos clientes. Ele utilizava três contas bancárias, em nome próprio e de familiares, para receber valores de fora do estado. Em depoimento, confirmou as transações, mas tentou se distanciar da fabricação das armas.
Segundo ele, “eu só comprava o material. O Anderson é que dizia o tipo do aço. Eu achava que era coisa de aviãozinho, não de arma”.
Extratos bancários anexados ao processo mostram depósitos vindos de Campinas, Rio de Janeiro e Goiânia, totalizando R$ 68,4 mil em apenas dois meses. Em uma conversa de WhatsApp analisada, Bastos comentou com Anderson: “O cara do RJ mandou 9 e pouco. Disse que quer o mesmo lote, mas com pintura preta”.
A Polícia Federal suspeita que o “cara do RJ” seja um comprador vinculado a facções criminosas, entre elas o Comando Vermelho (CV).
O dinheiro e o disfarce
A Polícia Federal descreveu a movimentação financeira do grupo como “fragmentada e estratégica”. Os pagamentos eram realizados por Pix, transferências fracionadas e depósitos em espécie, com valores variando entre R$ 2 mil e R$ 15 mil. O dinheiro circulava por contas de familiares e de prestadores de serviço da Kondor Fly.
Em depoimento, Gabriel Carvalho Belchior, proprietário da empresa, negou ter conhecimento da produção de armas. No entanto, admitiu ter autorizado o uso noturno da fábrica.
Armas eram repassadas para facções no Rio e nordeste
As peças eram produzidas em maquinário de uma fábrica que, na realidade, deveria fabricar componentes aeroespaciais.
O empresário afirmou à Polícia Federal: “Eles disseram que iam testar peças aeronáuticas e projetos de aviação. Eu jamais imaginei que usavam minhas máquinas pra isso [projetar e produzir peças de fuzil]”. Até a publicação desta reportagem, ele permanecia foragido.
O delegado Di Schiavi classificou a conduta do empresário como “omissão deliberada e consentimento tácito”. Segundo o relatório, “os investigados adotaram métodos de ocultação típicos de lavagem de dinheiro, com uso de contas de terceiros e justificativas empresariais forjadas”.
Conversas reveladoras
O inquérito também traz prints de conversas de WhatsApp que evidenciam como os integrantes negociavam entregas e comentavam sobre os compradores.
Em uma das mensagens, datada de junho, Anderson envia a Wendel a foto de um conjunto de peças recém-usinadas e escreve: “Esse aqui vai pro mesmo cara do RJ, fala pra ele que tá o mesmo valor do último, mas com rosca melhor”.
Wendel respondeu em seguida com um emoji de fogo e a frase: “Beleza, amanhã mando o Pix do outro cara”.
De acordo com o Ministério Público de São Paulo (MPSP), essas mensagens foram consideradas provas diretas do comércio ilegal de armamentos.













