Documentos obtidos pelo Metrópoles revelam que o escândalo de fraudes no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), considerado um dos maiores já registrados no órgão, poderia ter sido contido desde o início. As irregularidades, segundo os registros, foram denunciadas há cinco anos, mas não receberam a devida atenção das autoridades. O caso veio à tona por meio de uma série de reportagens publicadas pelo Metrópoles a partir de dezembro de 2023.
Em 2020, período em que houve um aumento expressivo no número de beneficiários vinculados à Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais do Brasil (Conafer), o então presidente do INSS, Leonardo José Rolim Guimarães (foto em destaque), foi formalmente alertado sobre possíveis irregularidades. Os avisos foram feitos por meio de ofícios enviados pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Rolim chegou a participar de reuniões específicas para tratar do assunto.
Apurações da coluna revelam que, em 20 de outubro de 2020, pouco antes da instauração de um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), em parceria com a Polícia Civil do DF (PCDF), o então presidente do INSS, Leonardo Rolim, participou de uma teleconferência com promotores e outras autoridades. A reunião teve como foco as suspeitas de irregularidades envolvendo a Conafer.
Durante a sessão, os participantes discutiram medidas para reforçar a importância da colaboração do INSS com o MPDFT nas investigações em curso. Também foram avaliadas propostas para aprimorar os mecanismos de fiscalização, além de melhorias no fluxo e na rotina dos Acordos de Cooperação Técnica, com atenção especial às atividades da Conafer.
Na ocasião, as partes acordaram que o INSS passaria a ter acesso integral às informações dos beneficiários vinculados à Conafer, com autorização para realizar auditorias a qualquer momento.
Ficou estabelecido que o instituto poderia fiscalizar autorizações, cancelamentos e desistências formalizadas pelos associados, além de acessar toda a documentação arquivada relativa ao período de descontos aplicados. Esse acesso seria garantido mesmo após cinco anos da exclusão dos registros.
Também foi definido que a autorização para desconto de mensalidade associativa teria validade máxima de três anos, sendo automaticamente cancelada caso não fosse renovada pelo beneficiário dentro desse prazo.
Durante uma audiência virtual realizada em 29 de abril de 2021, o INSS comunicou a adoção de novos procedimentos e a atualização de suas rotinas administrativas e de fiscalização. A medida visava implementar um novo sistema para gerenciar os descontos financeiros efetuados por entidades e sindicatos em nome de seus filiados.
Com a mudança, o INSS suspendeu, a partir de agosto de 2020, a cobrança das contribuições associativas dos beneficiários inscritos entre abril e julho daquele ano. A suspensão deveria durar até a apresentação dos Termos de Autorização, com prazo máximo de 90 dias para regularização.
Contudo, mesmo sem a apresentação dessas autorizações, Rolim autorizou, em resposta a um pedido da Conafer, o pagamento integral à entidade, sem reter os descontos associativos mensais.
Apesar dos acordos estabelecidos nas reuniões e dos alertas direcionados a Rolim, as denúncias que vieram à tona nos últimos meses, bem como o cenário acumulado ao longo dos anos, indicam que nenhuma medida efetiva foi adotada pelos gestores.
Omissão e homenagens
Jobson de Paiva Silveira Sales, atual diretor de Gestão de Pessoas do Ministério do Trabalho e Emprego e então diretor de Atendimento do INSS, participou das reuniões ao lado do presidente do instituto na época.
Em 2020, durante o período em que a Conafer enfrentava suspeitas de fraudes no INSS, Jobson recebeu uma homenagem da entidade. A placa entregue a ele destacava seu “talento, bom caráter e profissionalismo” e foi concedida logo após a conclusão de um processo interno no INSS que permitiu a continuidade dos descontos da Conafer em aposentadorias e pensões, mesmo com alertas de servidores sobre possíveis irregularidades.
Durante sua gestão como diretor de Atendimento no INSS, Jobson de Paiva Silveira Sales autorizou a retomada do Acordo de Cooperação Técnica (ACT) com a Conafer, que havia sido suspenso após a identificação de indícios de fraude. Entre 2019 e 2024, a arrecadação da entidade aumentou expressivamente, passando de R$ 350 mil para mais de R$ 202 milhões.
De acordo com a apuração da coluna, Jobson teria atuado para atrasar o andamento da investigação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Quando os promotores começaram a exigir esclarecimentos sobre os descontos, a cúpula do INSS criou um grupo de trabalho interno — ação vista por membros do MPDFT como uma manobra para enfraquecer a apuração. Documentos indicam ainda que Jobson chegou a enviar um ofício diretamente ao Ministério Público.
Operação Sem Desconto
Na quarta-feira (14/5), a Polícia Federal cumpriu novos mandados na Operação Sem Desconto, que investiga fraudes em descontos associativos irregulares. Os alvos foram Cícero Marcelino de Souza Santos, assessor do presidente da Conafer, Carlos Roberto Ferreira Lopes, e sua esposa, Ingrid Pikinskeni Morais Santos. A PF investiga se o casal adquiriu veículos de luxo com recursos desviados dos beneficiários do INSS.
A ação ocorreu simultaneamente à divulgação pela coluna das primeiras investigações do escândalo, iniciadas em 2021 pelo MPDFT e pela Polícia Civil do Distrito Federal. O Procedimento Investigatório Criminal (PIC) já indicava a existência de uma estrutura criada pela Conafer para fraudar filiações e obter autorizações de descontos em massa de forma ilegal.
A análise do Ministério Público identificou que o número de supostos associados da Conafer aumentou de 42.810 para 279.520 entre janeiro e agosto de 2020. Esse crescimento coincidiu com o fechamento das agências do INSS durante a pandemia, o que dificultou a contestação dos descontos pelos beneficiários. Nesse período, a arrecadação mensal da Conafer ultrapassou os R$ 40 milhões.
Ao ser cobrada, a Conafer não apresentou as fichas de autorização completas. As poucas que entregou apresentavam irregularidades, como ausência de datas ou assinaturas suspeitas. Para justificar a coleta das autorizações, a entidade contratou a empresa Target Pesquisa de Mercado por R$ 750 mil. Parte do trabalho foi repassada à Premiar Recursos Humanos, que, segundo depoimentos, teria manipulado arquivos e forjado assinaturas.
Um dos depoentes admitiu ter alterado documentos em PDF para forjar filiações. Ele se apresentou voluntariamente à Polícia Civil do Distrito Federal em junho de 2021 e relatou ter recebido ameaças. Além disso, um procurador da Premiar confirmou à polícia a relação entre a empresa, a Target e a Conafer.
Patrimônio
Durante o auge do esquema, Carlos Roberto Ferreira Lopes e seu irmão, Tiago Lopes, expandiram significativamente seu patrimônio. Eles abriram novas empresas, como a Agropecuária Lagoa Alta, registrada com capital declarado de R$ 3 milhões — embora a escritura indicasse um valor inferior a R$ 32 mil. Tiago, que já havia sido condenado por improbidade em outro escândalo envolvendo sindicatos, passou a integrar negócios como a TL Agropecuária e os Auto Postos TL.
Mesmo diante das suspeitas, os repasses do INSS à Conafer continuaram sendo realizados. As transferências só foram suspensas após a divulgação de reportagens do portal Metrópoles e crescente pressão do Congresso Nacional.
Em dezembro de 2024, a Justiça Federal acolheu um novo processo que envolve os mesmos investigados. Atualmente, o caso reúne documentos da Controladoria-Geral da União (CGU), auditorias internas do INSS e mensagens interceptadas pela Polícia Federal.
O esquema
O escândalo no INSS foi exposto pelo portal Metrópoles por meio de uma série de reportagens iniciadas em dezembro de 2023. Três meses depois, novas publicações revelaram que a arrecadação de entidades com descontos de mensalidades sobre benefícios de aposentados havia atingido R$ 2 bilhões em apenas um ano — mesmo com diversas associações respondendo a milhares de processos por fraudes em filiações de segurados.
As investigações jornalísticas serviram de base para a abertura de inquérito pela Polícia Federal e impulsionaram apurações conduzidas pela Controladoria-Geral da União (CGU). Ao todo, 38 reportagens do Metrópoles foram citadas pela PF na representação que deu origem à Operação Sem Desconto, deflagrada em 23 de abril.
A operação teve forte impacto político e institucional, resultando nas exonerações do então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, e do ministro da Previdência, Carlos Lupi.