Em parceria com pesquisadores da Poznan University of Medical Sciences, na Polônia, cientistas da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto (FMRP-USP) desenvolveram uma ferramenta que usa inteligência artificial para prever a agressividade de vários tipos de câncer a partir da análise da expressão proteica.
A plataforma PROTsi foi desenvolvida para auxiliar na avaliação do risco em pacientes oncológicos. Ela processa informações sobre as proteínas presentes nos tumores e produz um índice que revela a potencial agressividade da doença e sua possível resistência às terapias.
Renan Santos Simões, doutorando da USP e autor principal do estudo, disse ao g1 que a inovação é considerada promissora para aprimorar o diagnóstico do câncer e auxiliar na elaboração de tratamentos personalizados.
Ele também destaca que a ferramenta pode facilitar a aplicação de medicamentos já disponíveis, ao identificar proteínas associadas aos tumores com maior agressividade.
“Essa plataforma permite uma visão mais precisa do comportamento do tumor, e isso pode influenciar diretamente na forma como os médicos escolhem o tratamento. Estamos falando de um possível impacto direto na vida dos pacientes”.
Recentemente, a revista científica Cell Genomics publicou a pesquisa, que recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Análise de 11 tipos de câncer
Utilizando dados do Consórcio de Análise Proteômica Clínica de Tumores (CPTAC), uma base internacional de dados científicos, os pesquisadores analisaram proteínas de 1.134 amostras de 11 tipos diferentes de câncer. Entre os tumores estudados estão os de cabeça e pescoço, útero, mama, ovário, pulmão, rim, cérebro, cólon e pâncreas.
Com base na integração desses dados, a plataforma detectou padrões proteicos diretamente ligados à agressividade dos tumores. O índice PROTsi, desenvolvido a partir dessa análise, demonstrou alta eficácia ao distinguir entre células tumorais e normais.
Nos tumores de endométrio (útero) e de cabeça e pescoço, a plataforma obteve seu melhor desempenho, embora tenha apresentado resultados positivos em todos os tipos analisados.
A ferramenta
Por meio da inteligência artificial, a PROTsi analisa as proteínas dos tumores e determina o grau de stemness, um índice que revela a semelhança das células cancerígenas com células-tronco, conhecidas por sua capacidade de se transformar em vários tipos de células do corpo.
O índice varia de zero, indicando baixo grau, a um, representando alto grau; quanto mais próximo de um, maior a tendência do câncer ser agressivo. Tumores com elevado grau de stemness geralmente apresentam resistência aos tratamentos e maior probabilidade de retorno da doença, caracterizando maior agressividade.
Simões explicou que a escolha de usar dados proteômicos, e não apenas informações de DNA ou RNA, foi estratégica, pois as proteínas mostram as ações efetivas que estão acontecendo no organismo naquele momento, enquanto o DNA indica o que a célula tem potencial para fazer.
“O DNA é como um manual de instruções. O RNA mostra quais instruções estão sendo copiadas. Mas as proteínas são o que está sendo realmente produzido e usado pela célula. É como ver a fábrica funcionando, não só o projeto. Em outras palavras, a proteína é a molécula que executa as funções dentro da célula, então dá uma visão mais direta e funcional do que está acontecendo ali”.
A professora Tathiane Malta, coordenadora do Laboratório de Multiômica e Oncologia Molecular da FMRP-USP e orientadora do projeto, destaca que a utilização de dados proteômicos representa um avanço significativo na modernização do modelo.
“Em 2018, publicamos na Cell Genomics [revista científica] um modelo baseado em dados de RNA e DNA. Agora, usamos proteínas. Como as proteínas são moléculas funcionais, conseguimos associá-las diretamente à biologia tumoral e ao potencial terapêutico”.
Inteligência artificial na oncologia
Os pesquisadores apontam que a convergência entre inteligência artificial, dados genéticos e análise proteica abrirá caminho para tratamentos personalizados. Segundo eles, a integração entre medicina, ciência e tecnologia não tem volta e será cada vez mais comum no futuro.
“São milhares de proteínas por amostra. É impossível para um ser humano analisar isso sozinho com precisão. A inteligência artificial consegue lidar com esse volume e ainda identificar padrões que a gente não vê. Isso não substitui o médico, mas potencializa muito o que a ciência pode entregar para o paciente”, destaca Simões.
De acordo com Tathiane, a aplicação da inteligência artificial na oncologia já acontece há mais de uma década.
“Já usamos IA na oncologia há mais de uma década, mesmo antes de se falar tanto no tema. Agora, com o avanço das tecnologias, ela se torna cada vez mais indispensável. Não é o futuro, é o presente”.
Destaque para o câncer de cabeça e pescoço
Os pesquisadores destacaram o câncer de cabeça e pescoço devido ao desempenho da ferramenta e à sua importância epidemiológica. Conforme dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA), essa é a terceira neoplasia mais comum no Brasil, com mais de 40 mil novos casos por ano. Por seu desenvolvimento muitas vezes silencioso, a doença costuma ser detectada em estágios avançados.
“Quanto mais cedo soubermos se um tumor tem alto potencial de agressividade, melhor podemos definir o tratamento ideal, seja ele cirúrgico, quimioterápico ou uma combinação”, contou Tathiane.
Diagnóstico e tratamentos
A ferramenta PROTsi não apenas indica o grau de agressividade do tumor, mas também identificou proteínas presentes apenas nas formas mais graves da doença. Essas proteínas, algumas já utilizadas como alvo em outros medicamentos, agora podem ser exploradas como novas opções terapêuticas contra o câncer.
“Muitas dessas proteínas já são alvos de medicamentos disponíveis no mercado para pacientes de câncer e outras doenças. E agora podem ser testadas em trabalhos futuros a partir dessa identificação. Isso abre uma frente promissora de reposicionamento de drogas, o que pode acelerar o desenvolvimento de terapias”, destaca a coordenadora.