Imagine sair do coração do Brasil, cruzar as vastas planícies do Centro-Oeste, serpentar pelas florestas do Norte e atravessar as montanhas andinas rumo ao Oceano Pacífico. Parece roteiro de uma expedição? Em breve, pode se tornar rotina — graças a um projeto que está ganhando forma nas pranchetas e nos acordos diplomáticos: a Ferrovia Bioceânica.
Anunciado com discrição formal nesta segunda-feira (7), o entendimento entre Brasil e China marca mais do que a fase inicial de estudos técnicos. É, na verdade, o início de um reposicionamento estratégico do continente sul-americano no tabuleiro global. Um plano ambicioso para conectar Ilhéus, no litoral baiano, ao porto de Chancay, no Peru — um dos mais modernos e recém-inaugurados hubs comerciais do Pacífico, bancado por investimentos chineses.
Uma costura de trilhos sobre o mapa continental
Não se trata de construir uma única linha, mas de entrelaçar sistemas já existentes e trechos ainda sonhados. A ferrovia vai costurar três grandes malhas brasileiras: a Norte-Sul, espinha dorsal que corta o país de Maranhão a São Paulo; a Fiol, que desce da Bahia ao interior de Goiás; e a Fico, que avança em construção até o oeste do Mato Grosso. É em Lucas do Rio Verde que esse mosaico se junta e aponta rumo ao Oeste.
De lá, o projeto desenha um caminho que ainda não existe em trilhos, mas já pulsa em planos: atravessar a fronteira com a Bolívia, cortar Rondônia, alcançar o Acre e finalmente tocar a Cordilheira rumo ao Peru. Não apenas um corredor logístico — mas uma linha de conexão entre povos, economias e futuros possíveis.
Quando diplomacia encontra engenharia
O que foi assinado não foi um contrato de obras, mas um pacto de intenções. Um memorando entre a estatal brasileira Infra S.A. e o Instituto de Planejamento Ferroviário da China. Juntas, as instituições irão traçar rotas, medir impactos, comparar terrenos e tentar tornar viável o que há muito está no papel. Os estudos avaliarão a malha já existente e como integrá-la a portos, rodovias, aeroportos e hidrovias, desenhando uma engrenagem logística entre países.
A Ferrovia Bioceânica se encaixa em uma peça maior: o programa Rotas de Integração Sul-Americana, lançado pelo governo federal em 2023. Seu objetivo é claro — fazer com que as fronteiras deixem de ser obstáculos e passem a ser pontos de encontro entre nações.
Mais que trilhos: caminhos de transformação
Há algo de simbólico nesse projeto. Ele aponta para o interior do Brasil, para suas cidades distantes dos portos tradicionais, e pergunta: e se o centro for também caminho de saída? E se o cerrado for rota para o Pacífico? Com o apoio do Novo PAC, os investimentos brasileiros tentarão responder a essas perguntas com obras — enquanto os olhos chineses enxergam nessa aliança uma chance de ganhar acesso direto às riquezas da América do Sul.
A diplomacia selada entre os presidentes Lula e Xi Jinping em 2024 não resultou apenas em palavras. O corredor bioceânico foi uma das quatro frentes acordadas, ao lado de propostas de reindustrialização e transição verde. Uma ferrovia pode carregar minérios e grãos, sim — mas também visões de mundo.
Um traço no mapa. Um plano para o futuro.
Por enquanto, tudo começa com mapas, medições e projeções. Mas o traçado já existe: nas BRs 364 e 317, nas conversas entre técnicos, nos papéis assinados em gabinetes. A Ferrovia Bioceânica ainda não apita, não treme o chão. Mas já corre, silenciosamente, sob os trilhos da geopolítica e da ambição.
Se for concretizada, não será apenas uma nova ferrovia. Será uma nova forma de olhar para o continente. E de, finalmente, cruzá-lo de ponta a ponta.